segunda-feira, 3 de agosto de 2009

A um jovem terapeuta

"Em suma, muito mais do que a vontade de ensinar os outros e mexer com suas vidas, é importante como já lhe disse, a aceitação carinhosa da variedade das vidas com todas as suas diferenças.


Sei como esse carinho se manifestava em mim, quando era ainda criança. Sobretudo aos sábados, eu voltava para casa, do cineclube de meu colégio, no fim da tarde. Em Milão, já era noite. Caminhava devagar, olhando para cima; gostava de ver as janelas iluminadas, a cor das cortinas, o brilho dos lustres, a luz trêmula dos primeiros televisores branco e preto. No verão, chegavam aos meus ouvidos o tilintar das mesas que estavam sendo postas e das cozinhas, alguns gritos, chamados e mesmo pequenas brigas, música e vozes do rádio. Eu ficava nostálgico daquelas existências, que imaginava, ao mesmo tempo, parecidas com a minha e diferentes. Sentia pena por todas as vidas que eu não viveria e uma certa alegria, porque pensava que, de todas, no fundo, eu podia reconhecer ao menos o barulho e o cheiro que me eram estranhamente familiares.


Mais comum do que o gosto pelas janelas iluminadas, a paixão pela literatura é, geralmente, sinal do mesmo carinho e da mesma aceitação diante da variedade das vidas. Detalhe: o amor pela literatura pode ser, indiferentemente, amor pelos autores de cordel ou pelos clássicos, mas é sempre amor por muitos livros."


Contardo Calligaris, "Cartas a um jovem terapeuta"